sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O mandacaru na sala de jantar

Ontem eu comprei um mandacaru. Isso mesmo. Sempre quis ter um cactus em casa, mas me diziam: "Dá azar..." E eu desistia. Mas ontem passei num florista quase em frente a meu prédio no Rio e perguntei: "Tem cactus?" Ele abriu um caminho entre samambaias e tinhorões e apontou-me o mandacaru. Fiquei fascinado pela planta. Não era um cactus qualquer; era um personagem do Nordeste, uma famosa planta brasileira.
O leitor já viu um mandacaru? Esse deve ter um metro e sessenta, reto, com três braços abertos, uma pele verde-oliva entre plástico e couro-de-lagarto, aberto em gomos sinuosos e cravejado de pequenos espinhos. Em minha casa há um enorme quadro amarelo com um sol em contra-luz e eu o coloquei ao lado, de modo a criar uma paisagem de caatinga na minha sala. Então, feliz com meu dia de jardineiro, resolvi escrever meu artigo semanal; mas fui tomado por um grande tédio.
Escrever o quê sobre essa paralisia histórica mundial que finge ser dinâmica, mas apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo, entre Bush e Osama, entre Lula e tucanos.
Do fundo da sala, meu mandacaru se postava como uma sentinela, ali, junto ao quadro ensolarado de Thereza Simões. E ele me despertou a fome de alguma coisa permanente, que viajasse no tempo dos milênios, nesse mundo caindo em epilepsia histórica. E resolvi escrever sobre ele.
Fixei-me no mandacaru, aproximando-me como uma zoom. Ali estava ele, há milhões e milhões de anos, imóvel, fora do tempo e da história, um observador mudo. Olhei bem a forma do mandacaru. E sua visão deu-me um grande alívio, o prazer de estar em contato com um filho da natureza como eu, companheiros há bilhões de anos , uma solidariedade discreta, como um guardião me protegendo.
Cheguei mais perto, passando a mão em sua pele lisa e dura como o dorso de um dragão, crivado de espinhos que palpei delicadamente, como a um bicho manso, mas que pode morder de repente. Minha mão tremia neste contato solitário, nós dois a sós na madrugada do Rio, chovendo lá fora - uma conjunção quase amorosa, ele quieto e dócil e eu curioso como um macaco diante do mistério. Ele é um individuo vivo, sim, tanto que cresce, floresce quando vem chuva no sertão, tem cardos para o mundo perigoso, mas não toma a iniciativa. Só espera. Percebo que tudo nele tem causas, razões milenares, esculpidas pela necessidade de existir. Quantos milênios se incorporaram na sua vontade de viver? O verde escuro tem uma razão, as volutas de seu corpo, seus braços em cruz, apelando para os ares, tudo é um relato cifrado para mim, narrando os eventos que passaram por milhões de séculos. A história da natureza está toda ali, contada por seus gomos e espinhos.
Ao homem que mo vendeu, perguntei se tinha de regar. Não, ele não precisa de água, nem de nada. O meu mandacaru não come nem bebe. Só vive. "Por que" - penso, metafísico. Para que? Para nada, nos ensinou Darwin, abrindo o caminho do "alegre saber" desesperançado para a filosofia. Nada.
Ele é elegante, frugal e forte como um sertanejo - a comparação inevitável. O mandacaru é um sertanejo de braços abertos diante do nada, sob o Sol, existindo em pleno vazio - como nós... Só que ele não tem ilusões de sentido, coisa de humanos. Ele é uma lição incompreensível, um segredo insuportável sobre nosso destino que não podemos encarar. Mas, se ele está fora da história - me pergunto -, por que então os espinhos? Ele se defende de que, há milhões de anos? O mandacaru está sempre pronto para a ação. Ele não ataca, mas contra-ataca os bichos que tentaram mascá-lo, dentes primitivos que interrompiam a ordem que seus genes lhe davam: "Exista! Viva!"
Por isso ele está sempre "en garde", com bracinhos curtos, como um soldado, um espadachim.



o resto aqui.

toda vez que leio esse texto, penso o quanto quero ter um mandacaru em casa, no meio da minha sala, me lembrando todo dia de que sou nordestina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário